Bruno Moura Castro é Defensor Público do Estado Da Bahia, Titular da 2ª DP Especializada na defesa dos direitos da criança e do adolescente e membro da Comissão Da Infância E Juventude da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep).
Confira a opinião deste especialista sobre os rumos do sistema socioeducativo previsto no ECA diante da pressão de parlamentares e setores menoristas da sociedade para a aprovação da vintenária PEC171.
Em termos jurídicos, existe possibilidade de alteração da maioridade penal?
R: A imputabilidade penal, por ser direto fundamental do cidadão, é insuscetível de qualquer reforma constitucional tendente a aboli-lo, nos termos do art. 60, § 4º da Constituição Federal. Essa discussão conduz necessariamente à ideia de que a redução da maioridade penal viola direito individual de não imputabilidade penal antes dos 18 (dezoito) anos, que é um padrão mundial, oponível frente ao Estado e respaldado em documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial a Convenção sobre o Direito das Crianças (1990). E apesar da imputabilidade penal não se encontrar topograficamente prevista no art. 5º da Carta Magna, o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que os direitos fundamentais não estão restritos ao referido artigo e sim espalhados em todo texto constitucional. Não podemos perder de vista que a liberdade é uma garantia constitucional e está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes por sua condição de pessoa em desenvolvimento, a quem confere a Carta Magna prioridade de atenção pela família, pela sociedade e pelo Estado, nos termos do art. 227. Além disso, a moderna hermenêutica constitucional regida pelo princípio da vedação ao retrocesso veda a supressão ou da redução de direitos fundamentais sociais, em níveis já alcançados e garantidos aos brasileiros.
O que propõe a PEC 171/93 e em que fase se encontra a sua tramitação no Congresso Nacional?
R: A PEC 171 tem por objetivo reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. Apesar de adormecida há mais de 20 anos, nosso Congresso Nacional, capitaneado por parlamentares como Eduardo Cunha, retomou a discussão do projeto. Assim, em tempo recorde a PEC 171 foi admitida na Comissão de Constituição e Justiça e aprovada em 1º turno na Câmara do Deputados, porém, ainda precisa percorrer um longo caminho, tendo que ser aprovada pela mesma Câmara em 2º turno e ainda tramitar no Senado Federal, antes da sua promulgação.
A que se deve essa prioridade que os legisladores dispensaram a PEC 171/93?
R: Com certeza a questão da segurança pública é um dos problemas que mais aflige o cidadão brasileiro, considerando o crescente números de ocorrências policiais, muitas delas sem nenhum esclarecimento, gerando um verdadeiro clamor social. Nesse contexto, nossos políticos estão pressionados a apresentar soluções para a criminalidade. Desta forma, as propostas mais simples e superficiais ganham espaço, pois representam uma resposta imediata ao problema, garantindo dividendos eleitorais aos políticos, pois a ampla maioria da população é a favor da redução.
A PEC 171 representará uma solução para violência urbana?
R: A proposta reducionista ataca a consequência e não a causa do problema. Nenhum país do mundo que recrudesceu seu sistema penitenciário ou que reduziu a maioridade penal diminuiu o número de crimes praticados. Países como Espanha, Japão e Alemanha reduziram a maioridade penal, mas sem efetiva diminuição da violência, o que levou, inclusive, esses países a voltarem atrás. Inserir nossos jovens no falido sistema penitenciário do Brasil é negar qualquer possibilidade real de ressocialização, uma vez que nossos presídios são verdadeiras escolas do crime.
Como tratar a questão da delinquência juvenil?
R: Enquanto discutimos a alteração no tratamento aos adolescentes em conflito com a lei, na verdade deveríamos nos perguntar se, após 25 anos da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, realmente conseguimos implementar a integralidade do seu texto legal?! A parte protetiva do Estatuto é tradada com descaso pelo poder público, não se efetivando políticas públicas voltadas a essa faixa etária, faltando investimentos, principalmente na área da educação, e faltando oportunidades viáveis para esses jovens. O adolescente marginalizado não surge ao acaso, ele é fruto de uma sociedade desigual, de um estado ausente, onde muitas vezes a criminalidade é a única alternativa. Precisamos investir na prevenção, afinal ninguém nasce delinquente e a criminalidade no Brasil é decorrente majoritariamente da desigualdade social, basta visitar qualquer unidade prisional do país.
Também tramita no Congresso Nacional o PL nº 333 de 2015, o que ele propõe?
R: O projeto de lei estabelece um novo lapso temporal máximo de internação para os adolescentes autores de ato infracional equiparado a crime hediondo e homicídio doloso, passando de 3 (três) anos, que é o prazo máximo de internação atualmente, para 10 (dez) anos.
Como ficaria esse novo regramento para os adolescentes que já se encontram cumprindo internação?
R: A medida socioeducativa, apesar de sua natureza pedagógica, inegavelmente também possui um caráter retributivo/aflitivo e, por isso, aplica-se, analogicamente, as garantias processuais penais ao adolescente. Então, como já acontece em relação ao sistema penal para adultos, a lei nova não retroagirá para prejudicar aqueles que praticaram atos infracionais/crimes anteriores à sua vigência.
Ao que parece, então, os princípios do sistema da Proteção Integral que norteiam hoje a aplicação das medidas socioeducativas privativas de liberdade previstas no ECA estariam todos fora de aplicação diante desse novo regime especial previsto pelo PL 333?
R: Quando o legislador mais que triplica o tempo máximo de internação, obviamente vai de encontro aos princípios da brevidade e excepcionalidade da restrição de liberdade, constantes no estatuto e norteadores de todo o sistema socioeducativo. O legislador, através do PL333/15, apresenta um claro recado a sociedade: a solução para a delinquência juvenil está na privação de liberdade e pelo maior tempo possível. Importante registrar que se pensarmos no sistema penal para adultos, considerando todos os benefícios inerentes à execução penal, é excepcionalíssimo o cumprimento de 10 anos de pena no regime fechado, similar a internação. Diante disso, nós estaríamos violando toda sistemática internacional de proteção aos direitos da criança e do adolescente, em especial as Regras Mínimas das Nações Unidas Para Prevenção da Delinquência Juvenil (Regras de RIAD), segundo a qual não é possível tratar um adolescente de forma mais gravosa do que um adulto nas mesmas condições. Ademais, não podemos comparar os efeitos de uma privação de liberdade em um adulto em relação a um adolescente. O jovem, por ser pessoa com a personalidade e caráter em desenvolvimento, tem na restrição da liberdade um efeito muito mais danoso e violento, pois é retirado da sua convivência familiar e comunitária em um momento de formação, o que pode trazer efeitos irreversíveis.
A privação de liberdade tem sido aplicada realmente como exceção?
R: O ECA afirma que a internação deve ser aplicada como ultima ratio, mas na prática verifica-se exatamente o contrário. Os magistrados ainda perpetuam uma visão tutelar e paternalista com relação ao adolescente em conflito com a lei e, nessa perspectiva, a correção está ligada diretamente ao castigo. O sofrimento inerente a privação da liberdade é sempre aplicado no “benefício do jovem”. Contudo, desde a Constituição Federal de 1988, foi introduzido no nosso ordenamento a doutrina da proteção integral, onde a criança e o adolescentes devem ser vistos como sujeitos de direitos. Diante disso, o grande desafio que se coloca para o futuro é a superação desse ranço tutelar, originário de uma época ditatorial e o respeito aos direitos e garantias dessa faixa etária.
Que critérios o magistrado usa para manter o adolescente privado de liberdade?
O fato da execução de medida socioeducativa não possuir parâmetros objetivos de tempo de cumprimento pré-estabelecidos deixa sempre a mercê da discricionariedade do julgador essa decisão, sendo que este poderá manter, por exemplo, o adolescente internado pelo prazo máximo de 10 anos, contrariando, inclusive, relatórios técnicos favoráveis da equipe multidisciplinar, já que estes não são vinculativos.
Poderíamos dizer que essa proposta de alteração no regramento das medidas socioeducativas dispensa um tratamento mais próximo daquele previsto no sistema punitivo do Código Penal?
R: Aumentar o prazo máximo de internação para 10 anos é afastar o caráter ressocializador e pedagógico da medida socioeducativa, transformando-a numa simples retribuição, numa simples pena. O contexto em que tem se discutido a delinquência juvenil no país apresenta um viés de vingança social, sem se refletir sobre as consequências que isso pode acarretar a médio e longo prazo. Manter por mais tempo os adolescentes nesse sistema encarcerador só vai devolver a sociedade um ser humano pior, que com certeza será um potencial reincidente.
Como são cumpridas atualmente as medidas socioeducativas previstas no ECA?
R: O adolescente no primeiro momento em que infraciona ingressa no sistema socioeducativo, isto é, passa a responder a um procedimento que muitas vezes culmina na aplicação de uma medida a ser cumprida em meio aberto. Porém, por omissão do Estado, essas medidas têm sido precariamente executadas, o que leva este mesmo adolescente muitas vezes a reincidir em outros atos infracionais. Portanto, a pouca efetividade dessas medidas não privativas de liberdade inaugura um ciclo vicioso, que gera a reincidência e, possivelmente, uma possível medida de privação de liberdade. Na minha opinião, se as medidas em meio aberto fossem efetivas seriam as mais adequadas do ponto de vista da ressocialização, pois ao mesmo tempo que cria um senso de responsabilidade no adolescente, não o priva de liberdade, condição tão cara à pessoa em desenvolvimento.
O isolamento especial previsto no PL 333 guarda alguma similitude com o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) previsto na Lei de Execução Penal (LEP)?
R: Sim. O PL 333, na realidade, institui um regime diferenciado de cumprimento de medida socioeducativa, porém, em nenhum momento a lei define o que seria este regime. O RDD é um regime diferenciado mais gravoso, contudo apresenta parâmetros determinados em lei, diferente do regime especial previsto no PL 333, que é extremamente aberto, o que o torna perigoso, pois deixa ao arbítrio do aplicador definir suas regras.